Por Simone Alves – Assistente Social da Unidade Força Feminina

O percurso histórico para a consolidação de políticas públicas, que possibilitassem a garantia da democracia em sua plenitude no âmbito da saúde para as mulheres no Brasil, sempre foi marcada por lutas entre o Movimento Feminista e setores conservadores fundamentalistas.

Uma das relevantes conquistas históricas do Movimento Feminista no Brasil foi à criação de uma área técnica de análise da saúde da Mulher como o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher – PAISM de 1983. Essa área específica do Ministério da Saúde conseguiu compactar algumas questões ligadas à singularidade da mulher, levando em consideração seu estilo de vida e faixa etária, para que assim, o Programa estabelecido em médio prazo, se configurasse a uma Política abrangente, capaz de fortalecer as ações emancipatórias em consonância a atuação do Movimento Feminista.

Durante as décadas de 1970 e 1980, o Movimento Feminista pontuou a importância de um debate reflexivo referente à saúde da mulher na esfera da reprodução. Durante esse precursor, novos grupos e movimentos de mulheres veem aderindo à luta pelo direito à reprodução e a saúde especializada para as mulheres, trazendo como debate político a promoção da justiça reprodutiva e sexual como pontes para novos tempos democráticos. (GIFFIN, 1999).

Participação Política

 

A Constituinte de 1987 registrou a participação política de organizações da sociedade civil que se expressou na convergência democrática de toda sociedade brasileira. A inserção das mulheres na política foi uma inserção de caráter progressista – tendo em vista os 24 anos de Regime Militar no Brasil 1964-1985.

A Assembleia Nacional Constituinte funcionou no período de 1º de fevereiro de 1987 a 5 de outubro de 1988, data da promulgação do texto constitucional, sob a presidência do deputado Ulysses Guimarães. As mulheres tiveram participação ativa nesse processo histórico. Em 27 de março de 1987, entregaram ao Presidente a “Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes”, que contemplava as principais reivindicações, reunidas em ampla discussão nacional, coordenada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, representado por sua presidente Jacqueline Pitanguy. (SOW, Marilene Mendes,: “A Participação Feminina na Construção de um Parlamento Democrático”: 2010, p.86).

A Constituinte de 1987 possibilitou o ingresso da mulher na política – ao chegar e tomar conhecimento da importância de sua inserção como representante legítima do povo, as mulheres que foram legitimamente eleitas pela população cresceram nesse espaço de poder, e, não somente pela riqueza e compreensão da representação legítima, mas levando em consideração do ponto de vista político, sendo estas portas vozes das demandas apresentadas pela comunidade feminina – é importante ressaltar a atuação efetiva de diversos movimentos sociais, dentre eles se destaca a atuação do Movimento Negro Unificado – MNU, operante no combate a todas as formas de racismo e preconceito desde o ano de 1978, em que sua atuação políticas consiste na organização da luta coletiva pela emancipação do povo negro no Brasil. 

A mobilização para a reestruturação do Estado Brasileiro Democrático de Direito ocorreu em todo país (1987). O posicionamento das mulheres, independentemente de alianças partidárias, foi um posicionamento libertário para o momento. A Constituinte de 87 consentiu que o Movimento Feminista interagisse com outras frentes populares na consolidação da atuação da sociedade para a redemocratização nacional.

Foto: Cirandas Parceiras/Força Feminina

Os avanços sociais que possibilitaram a inserção das mulheres na área da política resultaram no enfrentamento ao machismo dentro dos partidos políticos. Uma das políticas de enfrentamento foi à implementação das cotas partidárias, resultante no avanço das mulheres na área da política, consecutivo no enfrentamento ao machismo dentro dos partidos políticos. 

As cotas partidárias têm como fator relevante a prática de medidas de enfrentamento ao machismo institucional. Infelizmente, elas não solucionam por completo os problemas relacionados à atuação da mulher de forma autônoma na política do Brasil. As cotas concedem o direito à representação política de 30% para as mulheres nos partidos políticos. Entretanto, os partidos políticos no Brasil ainda são conduzidos majoritariamente por homens. Anteriormente não existia uma punição ao partido que não cumprisse as regras – a lei não era viabilizada de fato.

Os níveis de manipulação das cotas partidárias revelam a ausência das mulheres de forma inconsciente nas esferas de toma de decisão política. Recentemente houve uma conquista pelo Movimento Feminista garantindo a obrigatoriedade do percentual de vagas na política para as mulheres. Mais um avanço do Movimento Feminista em prol da representação política nos espaços de poder e tomada de decisão.

Políticas de Saúde

Considera-se pertinente trazer algumas questões que possam subsidiar as discussões relacionadas à justiça reprodutiva sobre um olhar de atuação política do Movimento Feminista.

Propostas foram construídas a partir da realidade vivida por mulheres reais em todo país; mulheres estas, muitas vezes sem nome, porém inseridas em um contexto milenar característico de opressão imposto pelo sistema patriarcal. Por essa questão, faz-se necessário destacar a desigualdade histórica entre homens e mulheres; desigualdade esta que contribui para as questões relacionadas à saúde da mulher – questões de gênero necessitam ser consideradas como determinantes de saúde, sobretudo para a população feminina brasileira.

As mulheres são as principais usuárias do Sistema Único de Saúde – SUS, com base em dados do IBGE 2013, o número de mulheres no Brasil é de 103,5 milhões, o equivalente a 51,4% da população brasileira. Nesse contexto, aumenta-se também a expectativa de vida das mesmas – de 65 anos para 77 anos de idade. Tendo em vista a conquista de uma pequena parcela das mulheres ocuparem os espaços de poder na contemporaneidade, a participação e a força feminina na sociedade, vem crescendo de forma linear – entretanto, há muito que avançar.

A atenção à saúde da mulher precisa ser compreendida na atualidade a partir de uma percepção mais complexa do seu contexto de vida; os avanços nas políticas de saúde para as mulheres em decorrência ao processo de reconhecimento de critérios que garantam os princípios do SUS em um formato integral. Pensando na diminuição das diferenças que a cultura patriarcal transmite nos papéis sociais de gênero no Brasil, foi criado o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres -PNPM.

O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres resultou na mobilização de 200 mil brasileiras que participaram da 2ª Conferência Nacional de Saúde para as Mulheres em Brasília – DF no ano de 2013. A medida conta com um orçamento de 17 bilhões de reais que se somam a objetivos, prioridades e metas que são articuladas a 22 Secretarias e Ministérios. Na estrutura do PNPM, encontram-se 388 ações que visam assegurar a independência econômica, a educação inclusiva, a saúde integral, a conquista dos espaços de poder, o direito à moradia e a terra, o enfrentamento a violência, do racismo e das desigualdades da geração. 

Insere-se assim, no âmbito dessas políticas, o paradigma da responsabilidade compartilhada: não cabe apenas ao organismo de políticas para as mulheres promover a igualdade de gênero, mas a todos os órgãos dos três níveis federativos. Para tanto, o PNPM é implementado com base na transversalidade, tanto do ponto de vista horizontal (entre os ministérios) quanto do vertical (porque ele responde nos níveis estadual, distrital e municipal às conferências realizadas nesses âmbitos e também porque precisa da parceria dos governos estaduais, distrital e municipais para melhores resultados).

Nesse cenário, a Secretaria de Políticas para as Mulheres adquire o papel de coordenação horizontal e, enquanto coordenadora, deve articular os órgãos, organizar os trabalhos, acompanhar e avaliar os resultados. (B823P BRASIL. “Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2013, p.114.)

O PNPM somado a outras ações demonstra o interesse do Estado em promover a igualdade de gênero, correlacionando à transversalidade da abordagem multidimensional e intersetorial; a divisão de tarefas entre os profissionais da área de saúde para uma ampla definição de alcance da política. É importante ressaltar que, durante de construção de políticas para as mulheres, foi implementada a Lei 11.340/2016; mais conhecida como a Lei Maria da Penha, que consta como Legislação partindo do princípio da abrangência do reconhecimento das múltiplas formas de violência contra a mulher na sociedade brasileira; esta é respaldada nos princípios do PNPM.  

Lei Maria da Penha 

A Lei Maria da Penha, para muitas mulheres que vivem em situação de violência, é configurada como um refúgio.

Esta Legislação responde às condições das mulheres no Brasil que vivenciam todas as formas de violência – em uma relação conjugal ou matrimonial. A Lei Maria da Penha é fruto do movimento feminista que constituiu a jurisprudência junto com um diálogo com movimento de mulheres a partir das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres com interesses na promoção de políticas de igualdade para as mulheres. É uma das leis mais conhecidas no Brasil, sendo promulgada no ano de 2006, recebendo este nome devido o ocorrido histórico da bioquímica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que sofreu por duas vezes tentativas de assassinato do marido.

Em relatos, Maria da Penha Maia Fernandes conta que, em 1983, acordou com um tiro em suas costas; tiro este que a condicionou a viver sobre cadeira de rodas. A partir desse momento, ela passou 19 anos e seis meses na luta pela prisão de seu algoz.

O Brasil foi consignatário pela demora na resolução do caso da senhora Maria da Penha Maia Fernandes. O processo passou pelas instâncias judiciais, chegando ao Superior Tribunal Federal STF; não obtendo êxito, Maria da Penha levou seu caso à Comissão Internacional de Direitos Humanos, sendo realizada a denúncia pelo Centro de Justiça pelos Direitos Internacional e o Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM. O Brasil foi condenado por não possuir mecanismos de defesa para a proteção das mulheres, tendo em vista a saga da senhora Maria da Penha Maia Fernandes, em busca de justiça para o seu caso.

Maria da Penha lutou para que sua causa e a de milhares de mulheres que vivenciam violência doméstica fossem reconhecidas pelas autoridades, pondo um fim a violência contra a mulher. O reconhecimento da Lei Maria da Penha, foi alicerçado na Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM, no âmago de suas competências como órgão de defesa das mulheres. SPM.GOV (2013). É importante ressaltar que, a violência contra a mulher é reconhecida pela comunidade médica com problemas de saúde pública.

GARCIA, (2013) atesta que a saúde e a doença encontram-se intimamente relacionadas ao bem estar físico e psíquico. A saúde também é medida pelos indicadores de morte e de doença. Para a autora, a saúde não é resultante do não estar doente, mas de uma configuração que perpassa condições sociais, culturais, econômicas e históricas. A mesma implica-se em um acesso amplo que envolve muito mais que o ingresso aos serviços e tratamentos; a saúde envolve questões de educação, moradia, renda, e escolaridade. Questões relacionadas à saúde e a doença, variam de acordo com a região e o desenvolvimento econômico e social das mulheres.

A saúde é salvaguardada pela Constituição Federal, no Artigo 194 onde é relacionada como: o Tripé da Seguridade Social. A Legislação 8080/1990 conhecida como fundamentos que direcionam o Sistema Único de Saúde- SUS, esta se baseia em 12 princípios que norteiam as práticas de saúde em todo território brasileiro. O princípio é uma regra fundamental seguinte de uma norma que não pode ser violada. No contexto de direitos sexuais e direitos reprodutivos das mulheres no Brasil, é importante ressaltar apenas dois desses princípios: o da integralidade e o da equidade.

O princípio da integralidade é conceituado como um dos princípios mais importantes para a saúde e atenção básica da mulher, tendo em vista a Legislação do SUS. A integralidade da atenção à saúde é muito mais que o tratamento de doenças; esta se configura em um conjunto de ações e serviços de saúde; capazes de garantir a promoção à saúde, a prevenção de doenças, o tratamento e a garantia de reabilitação da pessoa enferma – configura-se em um contexto bastante amplo e muito maior que a ausência ou tratamento de doenças.

A equidade é trazida na Legislação do SUS na contextualização de atributos essenciais a serem estabelecidos em critérios epidemiológicos, demográficos, socioeconômicos e culturais – entretanto, questões relacionadas à saúde da mulher, insere-se a questão de gênero; esta se diferencia da atenção à saúde com respeito à vida e atuação cotidiana da mulher brasileira. A equidade tende a priorizar as mulheres em situação de vulnerabilidade identificando quais são suas necessidades de saúde, procurando resguardar e oportunizar a igualdade de acesso a cuidado integral.

A equidade em si, envolve solidariedade, generalidade e convivência entre os diferentes. A mesma não está correlacionada à igualdade; a equidade inserida na Legislação do SUS com o fundamento de que todos possuem o mesmo direito do uso dos serviços públicos. 

O principal desafio para a melhoria das condições de vida e da promoção de igualdade para as mulheres na sociedade brasileira é o fim da cultura patriarcal; esta tende a condicionar mulheres a um regime de subalternidade e dependência total dos homens – dependência política, social e econômica. Faz-se necessário a abertura de frentes para formação política das mulheres; localização de possíveis lideranças em espaços ocupados por mulheres.

O desenvolvimento do trabalho de base possibilita o enfrentamento a todo forma de opressão do sistema patriarcal contra a vida das mulheres. É importante pensar em propostas que assegurem mais espaços e que proporcione uma maior qualidade de vida para as mulheres e que interfiram diretamente para a melhoria da saúde.

1º Encontro das Cirandas Parceiras 2022

No dia 19 de maio realizamos na sede do Força Feminina um encontro com a temática Cirandas das Mulheres: Construindo Caminhos de Direitos. Esteve presente nesta discussão representantes de instituições parceiras (Instituto Odara, Movimento Nacional de População de Rua, Movimento Nacional de Cidadãs PositHIVivas e Núcleo Engenho Velho da Federação), mulheres atendidas, APROSBA, Casa Marielle Franco Brasil e Equipe; mediado por Simone Alves e Sirley Silva.

Foi um momento de reflexão conjunta, problematização e troca de experiência sobre a caminhada das mulheres na busca pelo acesso aos seus direitos. Agradecemos imensamente pela participação de a Marcia Ministra, Sueli Oliveira, Rosaria Piriz Rodriguez e Lindinalva Silva pela construção coletiva.

Foto facilitadoras da discussão: Marcia Ministra, Sueli Oliveira, Rosaria Piriz Rodriguez e Lindalva Silva.
Mediadoras: Simone Alves e Sirley Silva.

Publicado originalmente no Blog Oblata Força Feminina

REFERENCIAS:

1. BRASIL, Constituição Brasileira de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 17 de maio de 2022.

2. LOPES, Marcio Alves e COSTA, Valéria Grace. Segregação E Periferização Em Cidades Planejadas – O Caso De Brasília; Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo.

3. JURKEWICZ, Regina Soares (Organizadora). Quem Controla as Mulheres: direitos reprodutivos e fundamentalismo religioso, São Paulo : Católicas pelo Direito de Decidir, 2011.

4. Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher/ PAISM – 1983https://www.cfemea.org.br/plataforma25anos/_anos/1983.php?iframe=lanc_paism_1983, acesso em 17 de maio de 2022.