Por Iracema Oliveira – Educadora Social

Como tudo começou? 

 

No Brasil, tudo começou em meados do mês de março deste ano, com os primeiros casos de Covid-19 detectados. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece, no mesmo mês, que está ocorrendo uma pandemia e o distanciamento social se torna a orientação mais comum, por parte dos governos de todo o mundo, como medida para deter a propagação do vírus.

No caso específico de Salvador, foram sendo gradativamente decretadas diversas medidas de enfrentamento à Covid-19. Fechamento de serviços essenciais, obrigatoriedade do uso da máscara em estabelecimentos comerciais, veículos particulares e transportes públicos.

 Foto: Adam Nieścioruk 

As estratégias adotadas foram se intensificando em função da rapidez da propagação da infecção pela cidade. Desde então, o poder público, percebendo que aquelas ações não estavam surtindo o efeito esperado, vem revisando e implementando novas estratégias.

Após observação e análise, as localidades detectadas com perfil de maior incidência de casos da doença ou com ocorrências de aglomeração nas ruas são tratadas pelo governo municipal com estratégias específicas (testagem, distribuição de máscaras e fiscalização ostensiva das medidas a serem cumpridas pelos estabelecimentos comerciais).

Um auxílio emergencial no valor de duzentos e setenta reais foi disponibilizado pelo município aos trabalhadores/as informais e autônomos, pessoas que estão nos cadastros da Prefeitura como tal. Beneficiárias do Programa Bolsa Família e/ou outros programas sociais não integram o perfil para recebimento deste auxílio.

…num país marcado pelas desigualdades (sociais, raciais, de gênero, etária etc.), a possibilidade de ficar em casa e lavar as mãos não é para todas/os.

Na esfera federal foi se desenhando a passos lentíssimos a possibilidade de um auxílio emergencial para trabalhadoras/es informais, chefes de família e desempregadas/os. Uma difícil negociação (entre sociedade civil, especialistas de diversas áreas, Câmara Federal, Senado, Ministérios e Presidência), que começou em abril e até a presente data ainda existem famílias que não conseguiram acessar a primeira das três parcelas previstas.

É difícil entender como um auxílio que tem por nome “Emergencial” só será liberado três (ou quatro) meses depois do início da emergência. Incongruências, incoerências e absurdos!

Muitas pesquisas estão sendo realizadas na tentativa de encontrarmos uma vacina que venha sanar a pandemia. Essas esperanças vêm nos dar alento, porém, o distanciamento social, o uso da máscara e o ato de lavar as mãos ainda são os meios mais eficazes para a proteção contra o Corona vírus até momento. Contudo, num país marcado pelas desigualdades (sociais, raciais, de gênero, etária etc.), a possibilidade de ficar em casa e lavar as mãos não é para todas/os.

Mulheres atendidas pelo Força Feminina – Unidade Oblata em Salvador BA e contexto anterior à crise pandêmica

A Rede Oblata é um organismo mobilizador que atende e acompanha mulheres que exercem a prostituição, em sua maioria negras. Respeitando as escolhas e os direitos das profissionais, não podemos deixar de ratificar que o exercício da prostituição no contexto de vulnerabilidade social as expõem a exploração e riscos materiais e subjetivos. 

Localizadas na encruzilhada de diversas opressões, as mulheres negras são interceptadas, simultaneamente, por problemáticas ligadas a raça, gênero, classe social, entre outras.  O intercruzamento destas violências agrava as situações desigualdades vivenciadas pelas nossas atendidas.

O Projeto Força Feminina, unidade da Rede Oblata que atua em Salvador, atende anualmente, cerca de 420 (quatrocentos e vinte) mulheres que, em sua maioria, apresentam baixo grau de escolarização. Em pesquisa diagnóstica realizada pelo Projeto em 2007, 80% das atendidas eram negras e cerca de 70% não completaram o ensino fundamental, o que  dificulta possibilidades de superação das violações e ao acesso à inclusão social. Pessoas oriundas de famílias pauperizadas, marcadas por conflitos familiares, pobreza e fome; 58% sustentam as suas casas e têm na prostituição a única fonte de renda familiar. Passados doze anos, através das experiências de acompanhamento realizado às atendidas e baseando-se no conhecimento empírico pode se afirmar que os dados sobre desigualdades se agravaram. 

Historicamente, mulheres em contexto de prostituição vivem em situação de vulnerabilidade, estigmatizadas, sob jugo de um Estado opressor, patriarcal, machista, lgbtfóbico, transfóbico, racista e capitalista. Cidadãs marginalizadas numa  sociedade preconceituosa, discriminatória e misógina. O Brasil só havia pensado nelas até então no âmbito do enfrentamento das IST’s (Infecções Sexualmente Transmissíveis). Elas não são vistas e pensadas como seres humanos holísticos e dotadas de potencialidades.  

São mulheres que precisam sobreviver à uma série de violências: física, psicológica, patrimonial, sexual, familiar, doméstica e institucional. Trabalham sem regulamentação e sem acesso a direitos trabalhistas. Geralmente são as chefes de suas famílias, mesmo que possuam companheiros/as, promovendo a sustentabilidade financeira e emocional das suas casas.

Quando a crise pandêmica se instalou

As vísceras das vulnerabilidades foram expostas. Nunca foi harmônico o viver das mulheres que exercem a prostituição. A sobreposição das opressões dificulta sua caminhada. Cidadãs que têm seus direitos fundamentais negados, seus anseios não são ouvidos e não podem lutar e usufruir das Políticas Públicas disponibilizadas a todos/as.

O enfrentamento à pandemia nos explicitou esta situação de apagamento e silenciamento de todas as lutas das mulheres que exercem a prostituição. Nenhuma política pública voltada para resolução da crise pandêmica as teve como público alvo, a ser cuidado. Muitas estão nos locais de prostituição e nas ruas trabalhando, se expondo ao risco de contaminação pelo Corona Vírus (e outros riscos) e não acessaram o Auxílio Emergencial. Aqui se faz necessário ratificar que esse auxílio serve para complementação da renda, não dá conta dos custos de uma família (aluguel, água, energia, alimentação, medicamentos, lazer etc.).  

O que de fato tem funcionado neste momento é a organização coletiva, o autoapoio, o trabalho realizado pelos movimentos sociais e pela Rede Socioassistencial.

A crise pandêmica que atinge a saúde física, mental, emocional, social, enlutou mais 80 mil famílias, afetou a política, economia, escancarou a problemática das desigualdades sociais, raciais, de gênero, etárias vivenciadas pela população brasileira. Com as prostitutas, sobretudo as mais pobres – que consequentemente são mais vulneráveis – não seria diferente.

As dificuldades de subsistência tornaram-se dilacerantes. Houve diminuição drástica do volume de programas o que exacerba a vulnerabilidade econômica. A necessidade do distanciamento social – para as que conseguiram fazê-lo – gerou sensação de isolamento, crises de ansiedade e depressão.  Observamos que as medidas adotadas pelo governo brasileiro não alcançam e não têm demonstrado interesse em alcançá-las. As estratégias para o enfrentamento à pandemia do Covid-19 não estão chegando até elas.

O que de fato tem funcionado neste momento é a organização coletiva, o autoapoio, o trabalho realizado pelos movimentos sociais e pela Rede Socioassistencial[2].  Os movimentos sociais, têm organizado a coleta e redistribuição de cestas básicas, máscaras, álcool gel, material de limpeza e de higiene pessoal. Estão sendo realizadas também campanhas e lives solidárias nas redes sociais para arrecadação de valores em dinheiro.

Sorororidade e solidariedade têm sido a marca deste momento desafiador que estamos a experienciar.

A ideia romantizada do “Novo Normal”

A narrativa do novo normal quer nos apresentar e nos fazer acreditar que estava tudo bem antes da chegada da crise pandêmica. Precisamos refletir sobre esta problemática. Vivendo num estado opressor, explorador, violador e silenciador, não é dado às mulheres atendidas pelo Projeto Força Feminina a possibilidade de assumirem as rédeas das suas vidas.  Como vamos poder ensejar um “novo normal” como algo positivo se o antigo sempre negou direitos e sobretudo dignidade às mulheres que exercem prostituição? O velho normal era excludente e estimulava a morte emocional, moral e física, promovendo o apagamento das suas existências.

Queremos pensar um normal inclusivo, que estimule e contribua para inserção cidadã, que preze e lute pela dignidade humana e bem viver das mulheres negras que exercem a prostituição. Seus gritos precisam ser ouvidos, seus anseios, suas lutas por dignidade e justiça social validadas.  

É necessário que elas sejam enxergadas como agentes de transformação, seres dignos de respeito e dotadas de direitos. Esperamos não voltar ao “normal”. O ideal é utilizar esta oportunidade para repensarmos a forma de lidar como o mundo, se relacionar com pessoas e evidenciar as nossas pautas, inclui-las nas agendas políticas e nos fortalecer.

Os corpos negros são invisibilizados, hipersexualizados, regulados e sobretudo desumanizados.

Fatores como a hipersexualização do corpo feminino negro, o machismo, o sexismo e o racismo em diversas estruturas, assim como reflexos do processo de escravização, estigmatizam esses corpos como não dignos de amor e cuidados.  Exploradas pelo racismo estrutural que está no cerne do nosso país desde sua invasão. Reafirmamos: as mulheres negras que exercem prostituição EXISTEM, sempre existiram e estão localizadas em um lugar da vulnerabilidade extrema. Mulheres resistentes e resilientes que criaram estratégias próprias de sobrevivência, organização e luta.

Somos gratas pelas trocas mútuas. Nós aprendemos muito neste convívio continuo com Elas!             

“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Angela Davis

Iracema Oliveira, Educadora Social do Força Feminina Rede Oblata em Salvador/Bahia

Conteúdo publicado no Blog Força Feminina – Rede Oblata Salvador

Disponível em: https://ffeminina.oblatassr.org/2020/07/27/novo-normal-prostituicao-e-mulheres-negras/

Referências                                                                                        

Lisboa, Gilmara Santos. Narrativas Das Mulheres Em Situação De Prostituição Do Centro Histórico De Salvador: Reflexões Sobre Gênero, Raça E Classe. Revista Feminismos. Vol6. Nº2. 2018.

Akotirene, Carla. O Que é Interseccionalidade? São Paulo (SP): Sueli Carneiro: Polen. 2019. (Coleção: Feminismos Plurais)

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? São paulo (SP): Sueli Carneiro: Polen. 2019. (Coleção: Feminismos Plurais)

RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

“Mulheres, raça e classe”: o que Angela Davis nos tem a dizer sobre Direito, escrito por Maciana de Freitas e Souza e Tamara de Freitas Ferreira, publicado em   Justificando, encontrado em: http://www.justificando.com/2019/05/23/mulheres-raca-e-classe-o-que-angela-davis-nos-tem-a-dizer-sobre-direito/

Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”, escrito por Alê Alves, publicado em El País, encontrado em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/27/politica/1501114503_610956.html

Capital, pandemia e os papéis do feminismo, escrito por SOS Corpo ao Outras Palavras, publicado no Portal Geledes, encontrado em: https://www.geledes.org.br/capital-pandemia-e-os-papeis-do-feminismo/

Como o coronavírus vai mudar nossas vidas: dez tendências para o mundo pós-pandemia, escrito por Cleiton publicado em El País, encontrado em: ://brasil.elpais.com/opiniao/2020-04-13/como-o-coronavirus-vai-mudar-nossas-vidas-dez-tendencias-para-o-mundo-pos-pandemia.html?fbclid=IwAR36Vck0bnkMS6RQaAG3wlxam2oTmZmD5nCwIfrWdRHyMNFAYBT5LEXOT2w

Como será o mundo pós pandemia?, entrevista de Debora Diniz a marília Marques do G1, publicado no Portal Geledes, encontrado em: https://www.geledes.org.br/como-sera-o-mundo-pos-pandemia-pesquisadora-da-unb-aposta-em-novos-valores-para-humanidade/

Dialogando com Kimberle Crenshaw (ou: porque falar de interseccionalidades nos limita), escrito por Anin Urasse, publicado Pensamento Mulherista, publicado em: https://pensamentosmulheristas.wordpress.com/2015/12/10/dialogando-com-kimberle-crenshaw-ou-porque-falar-de-interseccionalidades-nos-limita/

Dupla opressão: mulheres negras, escrito por Aline publicado em Aventuras na Historia, encontrado em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/dupla-opressao-mulheres-negras.phtml

Escolha de muitas é entre se contaminar ou passar fome, entrevista de Monique Prada a Manuela Rached Pereira, publicado no ponte, encontrado em: https://ponte.org/escolha-e-entre-se-contaminar-ou-passar-fome-diz-prostituta-e-ativista/?fbclid=IwAR3HK9ZV8ubmUlTR-sIVILfGsDOKtKrbZzd8YPnolBX51n2_U6GE4RFjng4

Mulheres em tempos de pandemia: os agravantes de desigualdades, os catalisadores de mudanças, escrito por Tink Olga, publicado no Portal Geles, encontrado em: https://www.geledes.org.br/mulheres-em-tempos-de-pandemia-os-agravantes-de-desigualdades-os-catalisadores-de-mudancasmulheres-em-tempos-de-pandemia/

Nós somos invisíveis’: trabalhadoras sexuais são afetadas pela pandemia, escrito por Marie Declercq ao TAB coluna do Uol, encontrado em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/28/nos-somos-invisiveis-trabalhadoras-sexuais-afetadas-pelo-coronavirus.htm

O futuro pós-coronavírus já está em disputa, escrito por Eliane Brum, publicado em El País, encontrado em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-04-08/o-futuro-pos-coronavirus-ja-esta-em-disputa.html

O novo normal é se acostumar com quase mil mortes por dia e ir para o bar beber?, escrito por Anderson Menezes, publicado na Coluna Agencia Mural – Folha de São Paulo, encontrado em: https://mural.blogfolha.uol.com.br/2020/07/07/o-novo-normal-e-se-acostumar-com-quase-mil-mortes-por-dia-e-ir-para-o-bar-beber/?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha&fbclid=IwAR3bhykoN8ZPwVduoWOFQLd8oLtcMdjYu2VYhJhFciKgS4gF-nuOxPwXAM8

Outra face da prostituição: Idosas, Negras e Analfabetas, escrito por Stephanie Ribeiro, publicado por Alma Preta, encontrado em: https://www.almapreta.com/editorias/realidade/outra-face-da-prostituicao-idosas-negras-e-analfabetas?fbclid=IwAR3AlWVT8FeGwc1BxDF4cfb1wayIko4dyLQD6Vgg5XNkVu0MdV2zjVVjkZw

Pandemia COVID-19 e as mulheres, escrito por Marlise Matos ao Anpoc, publicado em: https://www.geledes.org.br/pandemia-covid-19-e-as-mulheres/

Profissionais do sexo não devem ser deixadas para trás na resposta à COVID-19, escrito pela equipe do O UNAIDS, publicado em O UNAIDS, encontrado em: https://unaids.org.br/2020/04/profissionais-do-sexo-nao-devem-ser-deixadas-para-tras-na-resposta-a-covid-19/ 

Sobre a prostituição de mulheres negras no Pós-Abolição, escrito por Beatriz Nascimento Prechet, publicado pelo Portal Geledes, encontrado em: https://www.geledes.org.br/sobre-a-prostituicao-de-mulheres-negras-no-pos-abolicao/

[1] Pedagoga, Pós Graduada em Gestão e Coordenação Pedagógica, Educadora Social do Projeto Força Feminina – Rede Oblata Brasil, Feminista Negra, militante pelos Direitos Humanos (luta contra racismo, machismo, sexismo, lgbtfobia e todas as formas de desigualdade e discriminação).

[2] A Rede Socioassistencial é uma política social constituída por um conjunto de serviços, programas, projetos e benefícios que compõem o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e são prestados diretamente ao cidadão ou por meio de convênios com organizações sem fins lucrativos.